“Um
anjo me visitou . Numa dessas manhãs em que o sol não perde o hábito de
repousar em minha janela, ele se chegou a mim , de igual modo como de algumas outras vezes ,
assim que acordava . No entanto, dessa vez , para minha surpresa, não veio
sozinho . Trouxe consigo uma amiga . Ela vinha logo atrás de si e, de forma
silenciosa, deu início a um passeio por todo meu quarto , enquanto eu, ao
avistá-la , ia me recompondo, não perdendo a oportunidade de contemplá-la . Ela . por sua vez, depois de seu gesto simples , adentrando em meu mundo, tornava-se pouco a pouco mais íntima de minhas
coisas e , finalmente , desejosa de estar mais próxima de mim , veio até a
cabeceira de minha cama , ficando ao meu lado .
A inevitável aproximação fez com que eu não resistisse e, por isso ,
tinha os olhos voltados tão somente para ela, tamanha era sua beleza . Uma beleza incomum . colorida,
muito colorida , a ponto de provocar em qualquer um que a visse , fascinação . Mas o
fato é que não existia qualquer outro ser naquele momento que pudesse admirá-la
, senão eu próprio . E ela estava ali, bem perto de mim , ao meu lado, querendo
ser vista, admirada ... O desejo dela era o meu ; e era de uma simplicidade
enorme; de desejar o belo , mas o belo que
viesse da alma , da própria essência do ser ; um belo que estivesse acima
daquele ao qual estamos acostumados e parecemos nos contentar, sem, contudo,
atentarmos , para o além do que somos capazes de ver .
Ela
descansava ao meu lado e eu a admirando . E o anjo , um pouco atrás ,
instrumento daquela beleza incomum que trouxera, nos admirava. Éramos três e os
três se tornavam um , intimamente ligados um ao outro , talvez de forma
inconsequente .
O
quarto não era mais apenas um quarto , mas o quarto . Um vento harmonioso
tomava conta de todos os cantos e seguido a tudo isso , a paz .
Eu
fechara meus olhos por alguns instantes e após um breve descanso que meu corpo
e mente mereciam, ao despertar , me dei conta de que ela com sua beleza descomunal ainda permanecia ao meu
lado , como que a zelar por mim . Antes que eu insinuasse me levantar da cama ,
ela, de forma antecipada, retirou-se e munida de sua delicadeza, se dirigiu à
janela , a mesma por onde resolvera entrar naquele dia . Assentei-me na beirada
da cama e continuava a observá-la . Antes de tomar qualquer atitude , percebi
que o anjo se juntara a ela . A partir de então, tive a certeza de uma
despedida . Diante da certeza , olhei para o lado oposto, atraído por um
pequeno barulho e ao voltar meus olhos para o anjo e ela , à janela , me
deparei apenas com a cortina em movimentos de vai e vem por causa
do vento .
Tive
um aperto no coração como nunca havia sentido em minha vida . Uma confusão de
sentimentos me sobressaltou; angústia , desejos; sonhos ... saudade . Jamais me
esqueceria daquele instante vivenciado por mim .
Todos
os dias , pela manhã , fico à espera dela . Uma espera contínua . O meu olhar agora limita-se à janela , à
cabeceira da cama ... Mas a minha memória , Ah, a memória! é viva e colorida , muito colorida ; um
colorido diferente dos demais já vistos por alguém . Ela era incomparável . Ela
era a minha borboleta , aquela que encantou a minha manhã certo dia , com seu
colorido deslumbrante . Eu ainda posso sentir o pólen que trazia consigo à
minha cabeceira , e ainda sinto o frescor de suas doces asas . Ela era
mais que uma simples borboleta , pois a sua beleza estava além de si . A sua
beleza era a essência contida no dorso das asas., A beleza daquela borboleta, à
janela , a me fitar , era a alma . A minha borboleta tinha alma e eu podia
vê-la e sentí-la.”
(Cícero
Aarão)