Uma revoada de pássaros
ecoa por todos os cantos da cidade . São as primeiras horas da manhã, festivas
. Semelhante a uma orquestra sinfônica , sob a batuta do maestro, os tons,
harmônicos e uníssonos soam de modo perfeito. E tanto uma quanto outra trazem
consigo o canto das flores , as mais longínquas, com toda sua graça, além do
horizonte onde o olhar humano é incapaz de alcança-lo , mas sentí-lo. E o sentimento chega a quem se dispõe. De modo paulatino, às vezes, sorrateiro, se
aloja em cada ser . E um desabrochar de
sentimentos aflora da alma .
É primavera ! Já desponta muito além das montanhas .
Uma primavera ainda movida a ventos frios , onde sobre a cama , repousa ainda o cobertor . São os ventos do sul, vindos com
as ondas do mar, ou de outras bandas,
talvez de matas e pastagens de outras
regiões da América do Sul .
As
ruas encontram-se, ainda , sozinhas , recebendo , contudo, as pisadas dos
primeiros transeuntes que caminham à procura
de alguma panificadora ou mesmo
um bar de esquina , onde se possa assentar por alguns minutos , degustar um
chimarrão, um simples café e vislumbrar a paisagem à sua volta, abrandando
o frio que teima em cortar a
delicadeza dos lábios .
Pouco a pouco as janelas das casas , com jardineiras
no parapeito, se abrem. A porta da
igreja principal da cidade e o padre ,
na entrada , de mãos elevadas aos céus, a abençoar a todos que passam , perto
ou longe , faz uma prece ao Deus altíssimo, clamando por paz . Uma contrição breve e um
sorriso largo, a contrastar com a batina . Um Deus te abençoe aqui outro
acolá e a sensação do dever cumprido .
As crianças ainda dormem. Depois da noite na praça
com seus cavalinhos de pau e travessuras sem fim . Escorregas, balanços e
gangorras, agora , permanecem à espera de outro infante. Enquanto isso, os brinquedos,
sem meninos e meninas, recebem apenas a visita do orvalho e das folhas
coloridas que se achegam, trazidas pelo vento manso , rolando pela terra, alojando-se ao pé de um banco,
aguardando quem deseje se acomodar e se habilite a respirar os ares frescos da manhã, admirando a paisagem
.
Um pouco afastado da alegria juvenil , dos velhos que caminham com suas bengalas e
suas dificuldades, trazendo à memória um tempo que ficou, na outra esquina, do outro lado da cidade, nos becos , ruelas e
bares de bilhar , homens bêbados e largados , de camisas entreabertas , se
esqueceram de si e se deixaram entregar à vida de qualquer jeito , estendidos nos
meios fios das calçadas, ignorando completamente os que por ali passam . O
guarda noturno, o caminhão da limpeza urbana a recolher os lixos ...Mais um dia
desponta e consigo a primavera e o colorido das flores . Entre uma esquina e
outra, onde se vê os poucos malandros da cidade de passos e gingas , do outro lado da calçada, as raparigas dão o
ar da graça, estendendo pequenas peças de roupas no varal da velha casa , onde
ganham a vida durante a noite , em meio a conversas de roda assentadas nos
colos dos marmanjos vindos, principalmente, de cidades vizinhas que alimentam promessas e esperanças de outra vida além dos
cabarés.
A pequena cidade amanhece e tem semelhanças às metrópoles. Características de ambas se
aproximam, eis que a única diferença diz
respeito ao espaço geográfico. O lado bom e mau do lugar, que se encontra em
qualquer canto do planeta, se cumprimentam , se encontram e se desencontram .
No meio de tanta gente, Glória é uma dessas ilustres
moradoras, . Possui um negócio há alguns
anos que a mantém financeiramente . Trabalha com hospedagem e devido ao seu carisma e sentimento de
solicitudes doces , une , de forma natural trabalho e lazer . Transforma com
sabedoria o trabalho num prazer , distanciando-o, portanto, da tarefa massante que poderia lhe causar .
Antes mesmo dos primeiros visíveis movimentos
de vida da cidade , Glória já está de pé para mais um dia . Todo dia é um
desafio . Muitas vezes , após o pôr do sol , o dia, para ela , ainda não findou
. Porém, quando esse momento chega, sente-se recompensada e, merecidamente, recolhe-se ao sofá próximo
da lareira , com meia taça de vinho tinto à mão e queijo branco sobre a mesa de
centro. Com olhar fixo nas labaredas , pensa na vida que foi e no que há de vir
. Anseia por surpresas , e boas, de preferência . Embora munida de uma
ansiedade , talvez repentina, contem-se . Repousa a taça na mesa ao lado , se
acomodando no sofá e, por fim, adormece .
No meio da noite , quando Glória , finalmente acorda,
se dá conta de que ainda se encontra no sofá da sala . Olha à sua volta ,
senta-se, respira fundo e após um breve deslize nos cabelos , levanta-se para
ir para o quarto . Antes de se deitar novamente, assentada na beirada da cama ,
tem um reencontro com a solidão . Apesar da cama de casal onde repousa seus
sonhos e angústias, não desfruta de boa companhia faz alguns anos . Glória é uma mulher só . Não lamenta a
ausência física de um homem , mas , decerto , a falta do amor que esse possa
lhe proporcionar na vida . Algo que a torne
completa . O amor que possa existir entre um homem e uma mulher .
Essa
solidão, aparentemente habitual, começa a incomodar Glória . A sensação de
desamparo, se dá, certamente, em virtude
da idade, que, como os anos , avança sem nos fazer convite .
Mas numa manhã dessas, entre indas e vindas de
afazeres no condomínio onde reside , teve a oportunidade de conhecer uma mulher
de idade além da sua , que, no encontro, provocou uma conversa . Entre um
assunto e outro, não perceberam as horas , a não ser a intimidade que já
possuíam entre si . Deram-se, pois , as
mãos e, desse modo, caminharam alguns minutos aos arredores do condomínio; o
tempo necessário a ambas . O instante
que a a vida lhes reservou para se confortarem . Depois de algumas horas, agora à porta do
apartamento de Bella , a nova amiga , trocaram carícias e cumprimentos e, antes
de se despedirem, combinaram um novo encontro .
Bella e Glória. Cada qual com suas histórias,
desenganos, paixões e saudades . Apesar de morarem alguns anos no mesmo lugar,
bem próximas , nunca haviam se encontrado. Nem mesmo brevemente com um aceno ao
longe , um bom dia , um boa tarde ... Misteriosamente esse encontra jamais se
deu, a não ser naquela manhã de tantos afazeres e rotina que causava à Glória
outra coisa senão melancolia e um profundo desapego da vida . O semblante abatido não escondia a
insatisfação e a falta de ânimo para as coisas mais simples. Mas aquele dia
fora diferente ! E não somente para Glória, mas para Bella também, eis que essa , de anos mais à frente daquela, se
sentia mais infeliz , desmotivada . Viúva , com a visão prejudicada em face de
um problema adquirido após alguns anos , limitando-a ao que mais gostava de
fazer durante seu estado de solidão, a leitura , encontrou na nova amiga uma
centelha de esperança , de vida .
Glória trazia consigo alguns descontentamentos na
seara do amor . Colhera, ao longo do caminho , paixões, amores secretos ...Mas,
sobretudo , desilusões . O pensamento cético em relação aos homens, estava
intimamente ligado a sua incredulidade no amor . Custava-lhe acreditar nesse
sentimento, eis que , escrava desse mesmo sentimento o qual não se
desvencilhava de modo algum, tornava-se uma mulher fria , sem vida .
Mas agora tudo parecia diferente . Como uma fagulha ,
ao fundo da lenha , na lareira , despertara para a vida . Da mesma maneira , a fagulha que se
transformara em chama , batia à porta de Bella , lhe proporcionando o calor da
vida . A vida que até então era fria , como a manhã daquele dia , antes da chegada de Glória .
Era a primavera de vento frio , de flores espalhadas
por todos os cantos aflorando as almas de toda gente .
Glória e Bella , assim como as flores em derredor ,
enfeitavam a si mesmas , regavam-se , renovavam-se , fossem ramalhetes ou ramos
; pétalas de rosa ; azaléias , violetas ; margaridas ... , flores do campo !
Aquela primavera, tinha o frescor próprio , diferente
de todas as outras primaveras . No meio de inúmeras flores , a primavera ,
singular em sua delicadeza, era ,
agora, de duas flores . Duas flores que
se destacavam no centro de todas as demais . A primavera de duas flores aflorava Glória e Bella .
(Cícero Aarão)
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