- CONVERSA MÓRBIDA –
Dois
amigos caminhavam , sendo que um deles acompanhava o outro , religiosamente,
todos os anos . Era sexta feira nublada, dia de finados .
-
Pois é, amigo , você sabe muito bem que estou aqui pela nossa velha amizade e
amigo de verdade é amigo em todas as horas .
Surpreso,
de certa forma com a revelação logo nas primeiras horas da manhã, o amigo
ouvindo a confidência de seu companheiro , interrompeu a caminhada , repousando
as mãos sobre ambos os braços e olhando-o fixamente, disse-lhe :
-
Obrigado , meu querido amigo , sabia que podia contar com você , obrigado .
Após
breves revelações mútuas , sem que deixassem os sentimentos aflorarem
completamente, contiveram-se e prosseguiram na caminhada , lado a lado, quando
o primeiro , o que dera início àquela conversa, esclareceu:
-
É , mas fique sabendo o amigo que estou fazendo isso pela nossa velha amizade ,
nada mais que isso, mesmo porque não acredito nessas coisas .
-
Tudo bem , tudo bem ! – disse o outro –
E
continuaram a caminhar , agora , silenciosamente .
Após
uma boa hora de caminhada, aquele que cumpria seu voto , sobretudo em prol de
seus entes queridos , disse que , embora fosse morador do Rio de Janeiro há
alguns anos , por se ausentar por outros tantos anos , não reconhecia o lugar
por onde andavam, decerto , por causa das últimas mudanças na cidade e, por
isso , não se lembrava de jeito algum da localização do cemitério a que se
propunha estar naquela manhã .
O
companheiro notando a inquietação do amigo , perguntou o que estava acontecendo
, o que tanto o afligia naquele momento .
-
Não consigo me lembrar onde fica o cemitério , que droga !
-
Não seja por isso , pergunte ao rapazinho ali da frente , ele deve saber !
O
rapazinho estava sentado à beira da calçada, às vezes olhando para o nado , em
outros instantes, a mexer no celular que tinha consigo , quando os dois se
aproximaram .
-
Mocinho , bom dia . Por acaso você sabe me dizer onde fica o cemitério ... –
não se lembrava do nome, contudo , não foi necessário , pois , mesmo o rapaz
não voltando os olhos para os dois , devido sua compenetração no celular,
respondeu-lhes meio que de má vontade : Ah, fica mais um pouco na frente !
Acabou de passar um pessoal aqui levando o caixão de um .....
-
Tudo bem , obrigado .
E
apressaram o passo , a fim de que não perdessem de vista o cortejo e , por fim
, não soubessem, definitivamente, como fazer , até que , conforme o rapaz lhes
dissera , o grupo ia um pouco mais à frente , cantarolando bem baixinho, como
se fosse uma romaria .
E
assim sendo , juntaram-se aos demais , mantendo-se cabisbaixo em respeito .
-
Ai, Santo Deus , só você mesmo pra me tirar cedo de casa pra isso ! Onde já se
viu isso , até morto tem dia comemorativo ! Ai, ai, ai, ai !!!
-
Fica quieto , silêncio !! Olha o respeito !
-
Tá bom , tá bom !!!
E
continuaram junto com todos , quando de repente começaram a ouvir tiros que em
poucos minutos se tornaram intensos .
Sem
demora , todos de uma só vez , se jogaram no chão , interrompendo de vez o
cortejo , afinal ninguém sabia de onde viam as balas . Alguns, prontamente , se cobriram com as
flores que levavam consigo sobre a cabeça, na tentativa de , quem sabe, se
protegeram do infortúnio da hora . Os tiros acenavam para o grupo , bem como toda
região como um bom dia ou boas vindas ao local . Embora fosse dia de finados , seria difícil
imaginar que alguém daquele grupo , apesar dos descontentamentos da vida e do
dia a dia , desejasse morrer .
Mesmo
deitados , aquele que fizera a vontade do velho amigo lembrou de perguntar :
mas , a propósito de que o finado que o amigo está se propondo a visitar ,
morreu ?
-
Ah, coitado , estava com uma série de dívidas , não sabia mais o que fazer ,
além disso , descobriu ter sido traído pela mulher com seu melhor amigo – mas poucos
sabem desse pormenor – conclusão , não aguentou e numa manhã como essa, morreu
de infarte fulminante .
Não
muito perplexo , o que ouvia atentamente , assustado , de olhos esbugalhados e
trêmulos disse , ainda com dificuldade de falar , como se estivesse a gaguejar
: É, está tudo pela hora da morte !
-
Vai passar , vai passar ! Sempre passa ! Isso já virou rotina no Rio de Janeiro
! Dizia o outro de forma otimista.
-
Ai, meu Deus , eu sei que tenho pecado , eu sei que tenho reclamado da vida ! E
dando início a um choro contido , ainda disse desesperadamente : Eu não quero
morrer , não quero , não quero morrer ! Não , não , não !!!
No meio do desespero , olhou para o
companheiro de longa data , mesmo deitado de bruços sobre o asfalto, dando-lhe
a mão , confidenciou-lhe de modo sincero : meu perdoa, amigo , me perdoa por
tudo !
O
outro , recebendo o gesto do amigo , calmo , porém atento , finalizou , lhe
dizendo:
-
Calma, amigo , calma !!! Ninguém morre antes da hora !!!
(
Cícero Aarão )